Tempos atrás, quando fiz uma cirurgia que me obrigou a fazer longo período de repouso, iniciei dois blogs: o Repensando Escolas (que fechei depois), e o Repensando Museus – que continua vivo, porém há vários anos sob a tutela da querida Adriana Ganzer.
Talvez a quarentena tenha me jogado na mesma situação de reclusão e restrições que meu pós-operatório... Porque é nesse momento que opto por recomeçar um blog ;-)
A ideia é escrever aqui sobre Educação, Infância, Arte e Cultura – não necessariamente nessa ordem. Algo que amplie as questões que coloco no insta @relicariosdeideias, mas que não se restrinja a elas. É falar sobre o hoje, sobre o ontem e o amanhã como entrecruzamentos de tempos não lineares. Falar de dores e amores, do feminino, de lutas que julgo importantes para um mundo melhor.
Espero que possamos, assim, construir mais um espaço de trocas entre nós :)
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Há anos prometi para minha amiga Mila que escreveria sobre o “novo normal” – o que deixa claro que não estava pensando, na época, em nada parecido com essa quarentena ou minimamente relacionado ao Corona.
A promessa foi feita em cima do pedido dela de que eu compartilhasse a experiência da menopausa cirúrgica e as decorrências dela provenientes. Da experiência inesquecível de dormir repleta de hormônios e acordar zerada deles, com o abdômen cortado como o do lobo mau, costurado sem umbigo com pontos de um cadáver autopsiado.
Foram meses de ondas de calor inimagináveis, cabelos caindo, unhas esfarelando, pele sem viço e enrugando, dores ósseas, secura em partes íntimas, dor onde antes sentia prazer, inchaços impressionantes nas pernas e pés, urgência urinária, uma cicatriz bizarra que diariamente saltava aos meus olhos e me mostrava concretamente o que estava sentindo corporal e emocionalmente, e a balança que indicava a rampa ascendente de 2, 5, 14, 23, 30kg a mais no meu já sobrepeso de longa data.
Menos de um ano depois da histerectomia total ampliada (leia-se: retirada de dois ovários, útero, colo do útero, linfonodos e raspagem peritoneal), nova cirurgia para colocação de tela abdominal a fim de corrigir a hérnia pós-cirúrgica dela decorrente. Nessa cirurgia, ganhei um presente! Consertaram a cicatriz anterior e me devolveram um umbigo! Que alegria!
Mas a bifurcação já estava sinalizada: ia continuar afundando e me vitimizando? Ou poderia reassumir as rédeas da minha vida e escolher uma nova estrada para ela?
Foi só a partir dessa última cirurgia que comecei, muito lenta e gradualmente, a me realinhar comigo mesma. E esse processo só aconteceu quando entendi que o caminho não era olhar no espelho e procurar encontrar em mim o meu “antigo eu”, mas olhar no espelho e acolher esse “novo eu” que se avizinhava...
Quem era, então, aquela “nova” mulher?
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho (1)
Comecei a buscar dentro de mim essa “nova eu”, e uma relação outra com o meu corpo.
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar (1)
Procurei pensar não mais saudosa e raivosamente no útero, ovários, trompas, colo do útero como aquilo que foi violentamente roubado de mim, mas como parte do meu conjunto-feminino que deu vida, acolheu e cuidou tão bem de minhas 4 filhas e já merecia repouso.
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento (1)
Procurei pensar não mais na perda da libido como nostalgia do que eu sentia/ eu era, mas como possibilidade de novas descobertas de mim, em mim e comigo.
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar (1)
Procurei pensar não mais na cicatriz como marca explícita da usurpação, do desrespeito e da violência contra meu eu-mulher, mas como memória da história pessoal vivida com sucesso e superação.
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo (1)
Procurei pensar não mais na fraqueza dos cabelos, da pele e das unhas como sinais de degeneração, decrepitude ou envelhecimento precoce, mas como convite a me cuidar mais, passar cremes, massagear-me docemente, manter unhas feitas e cabelos mais cuidados.
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar (1)
Procurei pensar não mais na secura íntima como dificuldade de obtenção de prazer, mas como oportunidade de incrementar as preliminares e favorecer a descoberta de novas zonas erógenas.
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino (1)
Procurei pensar não mais a obesidade como empecilho de fazer coisas, mas como desafio a ser encarado de maneira direta e serena (e assim, nesse tempo, entre perdas e ganhos, deletei 22kg dos 30kg que adquiri na época...).
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar (1)
Conscientizar-me de mim. Reconhecer-me em mim. Buscar minha inteireza, preenchendo de forma diferente, delicadamente, os vazios e as faltas. Foi (acho que permanentemente é) um processo lento, não linear, pleno de desafios, alegrias e tristezas, luzes e sombras, altos e baixos, idas e vindas. Mas mesmo ainda em percurso, sei que já me sinto em paz com esse “novo normal” – afinal, essa sou eu!
Mas esse conceito de “novo normal” não se aplica apenas às transformações físicas, mas sim a fortes marcos de mudança. Esse que narrei acima não foi o primeiro, tampouco será o último marco de mudanças em mim. Talvez o primeiro grande marco que tenho consciência de ter vivido tenha sido minha gravidez na adolescência – dormir uma menina de classe média alta, cercada de regalias e conforto, cheia de sonhos e ideais, apaixonada...
Menina
Que um dia eu conheci criança
Me aparece assim de repente
Linda, virou mulher (2)
E acordar grávida, sentindo-me rejeitada pela família e pelos amigos, centro dos comentários maledicentes do colégio, tendo que lavar, arrumar, cozinhar, faxinar, trabalhar, sustentar-me, dar conta de uma relação a dois, novas estruturas familiares, cuidar de um bebê... Tenho certeza que a “antiga eu” dormiu aos 16 anos, e a “nova eu” acordou e descobriu que, instantaneamente, tinha 30.
(...) Te carreguei no colo, menina
Cantei pra ti dormir
Te carreguei no colo, menina
Cantei pra ti dormir (2)
Só gratidão ao meu companheiro Marcio e a minha primeira filha, Dani, por, pacientemente, me ajudarem a ver que tinham tantos ganhos em meio àquelas tantas perdas sentidas na ocasião. Sim, me ajudaram a perceber e sentir que a “nova eu” eram muito mais interessante, poderosa, forte, crítica e segura do que a “antiga eu”.
Mais de 20 anos depois, fizemos uma mudança geográfica. Mudei com Marcio e as duas filhas mais novas – Carol, na época uma adolescente de 16 anos; e Ciça, uma pré-adolescente de 12 – para Floripa. Tempos depois, juntou-se a nós a Tati, com 22.
Seria um novo marco familiar. E ali ficaria muito clara a diferença entre viver o “novo” procurando ali os traços, rastros e semelhanças com o velho; ou viver o “novo” procurando
descortiná-lo como uma criança ávida por descobrir as belezas do mundo. Buscar enxergar o Rio em Floripa – Ah! Também tem praia, lagoa e montanha! – seria o erro estratégico que dificultaria a entrega. Mas buscar o que Floripa queria me mostrar seria um acerto! Uma maneira de viver o “novo normal” de cidadã catarinense em plenitude. Senti, então, que minha mudança foi muito diferente da que Marcio e as meninas viveram.
Importante aprender ali que não sentimos pelo outro; que cada um tem que viver seu próprio luto: suas perdas, seus ganhos e seus reencontros consigo mesmo à sua maneira. E assim foi!
Atualmente, o Corona está se colocando também como um desafio de mudanças de grande magnitude – não só para mim, meu marido, quatro filhas, genros, netos e neta. A primeira grande diferença é que, desta vez, estamos vivenciando um fator global de mudança! Estamos diante de um vírus novo e, portanto, o mundo como um todo ainda está em fase de aprendizagem sobre/com ele. As notícias, que começaram antes vindas de lugares distantes, ganham concretude com o isolamento social. E os primeiros casos entre amigos, a primeira morte, trazem proximidade, concretude e intimidade – rosto, história de vida, nome e sobrenome! – ao antes nebuloso e longínquo.
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá (3)
Saudades apertam e doem! A roda do mundo se faz mais viva do que nunca. A ideia de interconectividade vai se consubstanciando mais e mais forte: na medida em que as máquinas param, a poluição diminuiu, a natureza vai se regenerando. Não se vive sem ter pensamentos e ações conectados aos mais vulneráveis – física, emocional e economicamente. O coração rodopia. E agora?
Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração (3)
A pergunta que comumente ressoa é “quando voltaremos a ter nossa antiga vida de novo?”.
Quando uma criança pequena pede para fazermos algo “de novo” – tipo empurrar no balanço, ou contar uma história... –, ela não se refere a fazer “novamente” ou apenas “mais uma vez”,
mas a fazer “de novo”, com toda a dimensão inaugural que as coisas novas têm! A cada vez que recontamos aquela história, que seria aparentemente a mesma, ela a escuta como uma história outra! Com novas chaves de compreensão; com elementos agora conhecidos...
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira pra lá (3)
Então acredito que essa seja uma possível chave de compreensão de para melhor lidarmos com o Corona e tudo dele decorrente: encarar os desafios e aprendizados que estamos enfrentando em nossa roda-viva de isolamento social como novas aquisições, novas habilidades, novas formas de fazer, ser, agir e pensar – ou seja, uma nova cultura.
E, assim, trago de novo (!) o conceito de “novo normal”. Acredito que ficaremos melhores em nosso processo de aceitação (sem deixarmos de passar pelas etapas anteriores do luto: negação, raiva, barganha e depressão... – cada um a seu tempo!) quanto menos nos fixarmos nostálgicos de nossa “antiga vida” – quanto mais e melhor encararmos/encarnarmos que podemos estar diantes do descortinar e do construir de uma “nova vida”.
Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração (3)
E se mudássemos a pergunta anterior e nossa nova pergunta fosse: podemos redesenhar uma nova vida planetária? Como ela seria? É aqui, neste ponto, que vejo renascer minha esperança, minha chave dar voltas e abrir novas janelas de compreensão/ação: aparece luz no fim do túnel, e vislumbro meu “novo normal”. Penso que meu foco, a partir de agora, pode passar a ser não mais a aguardada retomada do meu “antigo eu”, mas a emergência, de novo (!), de uma “nova mulher”, que pode ser ainda mais solidária e militante, mais tecnológica, mais autossuficiente, ainda mais cuidadora e autocuidadora, mais comedida, mais organizada, mais criativa e artística, mais dançante e com o sorriso e a gargalhada mais soltos... Menos rueira, menos acelerada, menos gulosa, menos exigente com os outros e consigo mesma, menos impaciente com e menos prisioneira do tempo, menos resistente a falar ao telefone, menos tímida para compartilhar suas expressões artísticas, menos descrente...
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola pra lá (3)
Torço para que o mundo não volte a funcionar “como antes”, mas sim de maneira mais diversa, plural, acolhedora, desacelerada, local, respeitosa, amorosa, igualitária (a partir do conceito de equidade), justa... – mais humana.
O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade pra lá (3)
Bom estar viva e poder ser parte atuante dessa roda-viva-de-mudança – não mais apenas de maneira pessoal, mas global. Aceita meu convite para irmos juntxs?
(1) Amélia – Chico Buarque
(2) Menina – Netinho
(3) Roda Viva – Chico Buarque
Bel Leite – abril/2020
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